terça-feira, 13 de maio de 2014

Identidade Metamorfoseada










Visto que às vezes sou uma mãe-a-tempo-inteiro  e outras vezes uma desempregada  (depende da disposição do dia), resolvi pôr-me a fazer formação, daquela de voluntariado que não se paga, entenda-se.

Aqui há uns meses comecei uma formação para poder ser uma operadora voluntária de um centro de acolhimento e acompanhamento para mulheres vítimas de violência doméstica. Parece interessante, não é? Pois, mas foi um flop e não passou disso mesmo, aparências. Para tirar o gosto amargo da boca inscrevi-me noutro curso organizado por uma grande associação de voluntariado italiana (ARCI) (há pessoas que nunca aprendem, já dizia o meu pai que eu bem me podia queimar na frigideira, mas voltava sempre lá com o dedito). O tema prometia: universos diferentes, e cada módulo era dedicado a um tipo de diversidade ou minoria se preferirem. Há sessões mais interessantes e outras menos, mas regra geral o curso era aquilo que eu precisava: inputs interessantes, dados por pessoas interessantes e competentes e um grupo de trabalho muito heterogéneo e estimulante. A última sessão foi sobre a homofobia nos meios de comunicação e na linguagem, e a nossa formadora era uma jornalista, lésbica e activista LGBT (espero ter metido as letrinhas na ordem correcta, se não, desculpem lá). Às tantas vamos precisamente bater naquela tecla LGBT que me chateia, a cena da “orientação”, e eu pergunto “e se fosse uma escolha, era um problema?”, “sim, porque podia ser reversível”, “e então” pergunto eu “as escolhas reversíveis minoritárias merecem menos direitos do que as cenas “naturais”?”. A tipa era inteligente, mas não percebeu à primeira, então dei um exemplo: “tipo, eu sou estrangeira, e se a vossa retórica passar, a malta chunga pode-me dizer que eu sou estrangeira porque quero e portanto devia voltar ao meu país, e já não ser estrangeira”. A tipa olha-me e respira. “ Mas ser gay faz profundamente parte da minha identidade, é uma cena intrínseca”. Eu respondo “desde que sou estrangeira, esse é um traço que entrou profundamente na minha identidade, apesar de ter sido uma escolha, é irreversível, e mesmo que fosse reversível eu tenho o direito de não revertê-la a não ser por uma outra escolha minha, ou não”. Eu já estava pronta para que a tipa me mandasse passear, mas ela respirou outra vez e disse: “tens razão, convenceste-me”. Fiquei sem palavras. Pensei “gosto de ti”, mas não disse nada, há coisas que não se dizem.

Mas fui para casa remoer, porque naquele bate-papo verbalizei uma coisa sobre a qual ainda não tinha reflectido de modo tão claro. Desde que vim para Itália, a minha identidade, o meu Eu, mudou de forma profunda e irreversível. Sou a mesma Carina de sempre, mas com uma identidade nova. Foram quatro as minhas novas aquisições identitárias, a primeira foi o ser Estrangeira. Não ser italiana, não partilhar com a maioria dos habitantes uma língua-mãe, memos culturais, uma história e um passado. 
 Não ter ouvido as mesmas canções de crianças, não fazer a mínima ideia de que raio estão a falar quando falam de TV ou música, ouvir as músicas que eles ouvem sem lhes dar a configuração cultural e emotiva que eles lhes dão… cada vez que se fala em qualquer coisa pensar (isso é aqui), morder  a língua 10 vez ao dia para não dizer frases que comecem por “no meu país” (porque na verdade… who cares?)

A minha segunda aquisição identitária foi uma nova ideologia pedagógica, sobre isto talvez poderei falar noutra deambulação (porque merece uma deambulação toda para si), mas trabalhar com um certo grupo de pessoas mudou radicalmente a minha forma de ver a criança e a educação, e sendo estas coisas tão importantes para mim, metamorfoseou partes importantes da minha identidade de uma forma que nunca tinha pensado ser possível.

A terceira foi a minha consciência de ser mulher – parece ridículo e absurdo, não é? É claro que eu sempre soube que sou mulher, mas ter consciência do que o ser mulher faz com que eu seja eu, essa consciência eu não tinha. Mérito de uma turma do mestrado de género e intercultura que acompanhou por um longo percurso de “masturbações mentais” (ups… esta palavras pode-se dizer não pode?).

Obviamente a quarta coisa a mudar-me profundamente foi o ser mãe – não podia deixar passar este cliché, pois não? Mas não vou enumerar as vantagens de ser mãe, nem os grandes sacrifícios que faço pelo meu filho e pela minha família (oh… coitadinha de mim), não. O que mudou foi que não era mãe e agora sou. Agora existe alguém que conta mais para mim do que eu própria (muito bonito, não é? Acho que até o Papa Francisco ia gostar). Agora vejo o mudo com outro óculos. Agora cada vez que entro num sítio o meu olhar parece um radar super sónico a detectar possíveis perigos, só para dar um exemplo. O que mudou em mim o ser mãe? Foi deixar de ser a actriz principal da minha própria vida. Parece uma cena horrível, não é? Mas é mesmo assim. Às vezes parece mesmo um bocadinho horrível, ou melhor, assustador, mas a natureza proveio-nos com a necessária quantidade de hormonas para que a coisa seja confortavelmente suportável e até desejável, tipo quando estamos apaixonados e fazemos uma porrada de parvoíces que depois pensamos “mas como é que eu pude fazer aquela cena?” estão a ver? Pois, na maternidade não há um “depois” :-)

Nada mau. Se os próximos quatro anos forem tão psiquicamente intensos como os últimos… venham daí! Até lá: work in progresso!
Baci
Carina

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