segunda-feira, 15 de julho de 2013

O tempo depois de Tiago




Quinze de Julho. De dois mil e treze. Quinze de Julho.
O tempo agora tem outro significado. Dois mil e treze será sempre um ano mágico, mitológico, o ano da Criação.

No dia 20 de Maio de 2013 saí do hospital de Poggibonsi. Cesco subiu até ao nosso andar com o carrinho de bebé apenas tirado da caixa. Estendemos lá dentro um pequeno lençol que uma das avós tinha feito. Deitamos lá dentro o Tiago. O Tiago. Gosto de passear este nome entre a língua e os dentes como fazia em criança com as palavras novas. Tiago. Gosto de sentir as cócegas que o ar me faz no céu da boca quando me demoro no g, para prolongar esse sabor na boca. Tiago.

Chovia de um céu cinzento e carregado. Eu sentia-me exausta mas excitada. Íamos para casa. Ao fim de meia-hora chegámos a Siena e começámos a subir a colina que entre o verde molhado nos leva à porta San Marco, porta por onde invariavelmente entramos na cidade. As curvas obrigam a uma diminuição da velocidade que é favorável à admiração da paisagem. Tinha uma sensação estranha, como se faltasse qualquer coisa. Faltavam as salvas, as pétalas de flores, os vivas e os tambores. Irritava-me que o mundo não tivesse saído à rua para saudar aquele milagre… como era possível que não o tivesse feito? Foi ali que me apercebi que nunca ninguém olharia para o Tiago como eu e o Cesco. Que aquilo era mais do que amor, mais do que eu poderia imaginar ou descrever.

A chegada a casa também não foi envolvida na magia que eu almejava. Um parto antecipado apanhara-nos um pouco de surpresa, e apesar de não faltar nada importante, muitas coisas ainda estavam nos caixotes. O pai tinha três dias para estar em casa, mas em vez de uma calma e tranquila entrada a 3 no ninho, havia coisas para arrumar e burocracias várias para tratar. A chuva e o vento contribuíam para a sensação de alienamento. E depois o dia a dia, o novo dia a dia.

Durante toda a minha gravidez nos bombardearam com frases do tipo aproveita agora para: dormir, ir ao cinema, descansar, namorar, ir jantar fora, cuidar de ti, etc. Qualquer pessoa inteligente percebe que ter um bebé em casa implica uma grande quantidade de trabalho e muitas noites sem dormir. É uma coisa que toda a gente sabe. Mas se uma pessoa sem filhos (e que não conheça bem pessoa com filhos) parar para pensar porquê, provavelmente descobre que não percebe lá muito bem a razão.
A razão é que os recém-nascidos precisam constantemente de atenção e dividem as 24 horas do dia em várias pequenas parcelas. Por exemplo dormem duas horas, e depois precisam de outras duas de atenção – em que será difícil fazer qualquer outra coisa. Na prática, isto significa que os pais dificilmente conseguem dormir mais dos que três/quatro horas seguidas, e que não conseguem executar  tarefas que durem mais do que uma hora, o que já é uma sorte. Se a mãe amamentar, significa que a cada duas/três horas terá que largar tudo para alimentar o pequenote cerca de 15min a meia-hora. Nunca imaginei que amamentar cansasse tanto. Na verdade as calorias gastas por dia com o amamentar são equivalentes a 40minutos de corrida, sem o exercício muscular, mas com uma considerável perda nutritiva para a mãe.

Enfim, é uma nova realidade diária que vira tudo do avesso. A primeira semana em casa foi muito complicada, porque entre a fragilidade física, entrar na nova rotina, aprender a cuidar do Tiago e a conhecê-lo e lidar com a ansiedade do medo constante de não estar a fazer as coisas bem, foi quase impossível encontrar um bolha de ar fresco (e aqui faço um parêntesis para sublinhar que as mães solteiras têm todo o meu respeito). Depois, dia após dia, as coisas começaram a melhorar.

Hoje olho para o meu pequenote e vejo o quanto já cresceu. Sinto muitas vezes um nó de emoção na garganta, como se me fosse realmente permitido assistir a um milagre. Não posso evitar a sensação ambígua de nostalgia e orgulho pelo seu crescimento. Já tenho saudades de quando era tão pequenino que cabia todo em cima da minha barriga, e ao mesmo tempo sinto uma curiosidade imensa pelas coisas que ainda estão para vir, o primeiro abraço, a primeira palavra.

Olho para este ser pequenino e apercebo-me mais uma vez de quanto é complexa e especial a vida. Esta cria foi biologicamente concebida para ser amada por mim. Tratar dele dá demasiado trabalho e implica um gasto energético demasiado elevado para ser suportado por um imperativo genético. Então, a evolução garantiu que ele fosse desenhado para suscitar amor e sentimentos de protecção. Olhos grandes, nariz pequenino, bochechas redondinhas, como qualquer ursinho de peluche. E cada vez que o pego ao colo e sinto o seu cheiro, cada vez que o levo ao seio para o alimentar, cada vez que o observo enquanto dorme, eu sinto-me completamente inundada de um amor ansioso que nunca tinha experimentado antes, e sinto uma grande compreensão por todas as fêmeas capazes de abocanhar quem quer que seja que se aproxime das suas crias.

Além das hormonas que me constringem a este amor cego, uma outra coisa que ajuda a suportar muito bem as fadigas de cuidar de um recém-nascido é que o Tiago é uma fonte inesgotável de risos. Caretas e carantonhas, ginásticas improváveis, concertos de peidinhos nas situações mais imprevisíveis, arrotos de homem grande e outras diversões.

O Tiago é a humanidade em estado puro, sem filtros e sem artimanhas. Todo ele é necessidades primárias, e comer é tão importante como ser mimado. Quando lhe demos o primeiro banho apercebi-me que apresenta já aquela dualidade humana que caracteriza a nossa natureza e a nossa História: curiosidade e receio pelo desconhecido: assim que lhe pusemos o rabinho dentro de água, o Tiago abriu os pulmões e começou a chorar estridentemente. Pouco a pouco, a sua expressão começou a mudar (mantendo sempre um certo ar desconfiado) e acabou por se acalmar e relaxar. Naquele momento pensei em Fernando Pessoa e em como ele definiu genialmente a aproximação instintiva do ser humano ao desconhecido: primeiro estranha-se, depois entranha-se.
Também este bebé se vai entranhando em mim. Chegará o dia em que resmungará embaraçado se lhe der um beijo, mas por agora – talvez um bocadinho graças às hormonas – eu e ele somos indivisíveis, somos um só ser, e eu – numa dimensão fisiológica que me corre no sangue e que está impressa nos meus genes – nos próximos meses existo para ele, para o alimentar, mimar, tratar, até que ele seja pessoa e nós voltaremos a ser dois.