terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Rotina e Coisas Boas



A rotina é uma coisa muita chata, seja onde for. Mesmo em Itália e mesmo quando se decidiu “largar tudo” para começar algo de novo, algo grande e bom, é certo, mas sempre rotineiro.
As aulas de gramática, por exemplo, são bastante chatas, bastante para não dizer mais, para ser educada e optimista. A verdade é que estar numa turma com 20 outros estrangeiros que fazem perguntas que achamos estúpidas (esta é a síndrome do estudante, ou pelo menos a síndrome da estudante Carina Rino, que acha que todas as perguntas – ou quase - são estúpidas), que lêem a passo de lesma com uma pronúncia entre o engraçada e o ridícula acaba eventualmente por ser realmente muito chato – noioso – diria um italiano (gosto deste conceito de dare noia).
De qualquer modo um estrangeiro acaba fatalmente por entrar numa rotina, ainda que se um pouco fora do normal, sempre rotineira – passo o pleonasmo. Por exemplo, explicar que embora seja portuguesa não falo espanhol é já automático (a explicação depois pode seguir diversos caminhos, conforme o interlocutor). Também arranjei uma forma mais ou menos breve e sintética de explicar às pessoas como é que vim cá parar (na verdade a maioria não quer realmente saber, por isso opto por respostas curtas e semi-engraçadas, que fazem sorrir um bocadinho e ajudam a quebrar o gelo). Parece vulgar, mas não me foi fácil descobrir a fórmula certa. Depois há ainda o problema de explicar o que é que se está a fazer, felizmente a maioria dos italianos contenta-se com um “por agora estou a aprender italiano”, é uma resposta muito útil e que também facilmente pode ser usada como ponto de partida para uma pequena conversa vazia mas socialmente interessante. A pergunta “de onde és em Portugal” é um pouco difícil e tive que fazer várias experiências, porque a maioria dos poucos italianos que conhecem Portugal conhecem Lisboa, e uns poucos iluminados já tiveram uma experiência inesquecível no Porto. Ao princípio explicava que era de uma cidade a 100Km a norte de Lisboa. Bom, muito vago e abstracto, e as expressões faciais italianas eram bastante claras: não era uma resposta interessante. Depois de algumas experiências mais ou menos de sucesso, parece que descobri a fórmula mágica: Leiria, uma cidade ao pé de Fátima. E pronto, heis que o esperado sorriso de compreensão se ilumina. Muitos na verdade não são capazes de identificar geograficamente a terra dos três pastorinhos, mas quase todos conhecem a referência e conhecem alguém que já lá tenha ido. Boa, mais 10 minutos de conversa.

Uma coisa muito boa de viver num país novo, é que há muitas terras e cidades novas para visitar (imagine-se Itália), a coisa má é que é muito provável não possuir roupa adequada a esses belos sítios novos, a outra coisa boa é que se tem uma desculpa absolutamente válida para comprar roupa nova. Eu por exemplo descobri em Trento (sim, onde foi o famoso concílio) que não tenho roupa adequada para a neve, e descobri-o da forma mais agradável possível: passando um frio descomunal e chegado a casa com dois pares de meias e um par de botas encharcados, e estatelando-me no chão pomposa mas elegantemente. Além de conhecer coisas novas e ter boas desculpas para comprar roupa nova, para uma portuguesa passar dois dias numa cidade onde neva continuamente é tão lindo tão lindo que uma pessoa se sente disposta a passar um bocadinho de frio e a fingir que é um pinguim. Os postais ganham vida, e cada árvore parece uma viagem ao mundo das fadas infantil. Além disso neste sítio fresquinho descobrimos um cervejaria com ÓPTIMA cerveja e com umas belas e saborosas salsichas. Sim, é verdade que Trento faz quase fronteira com a Áustria, mas é indiscutivelmente italianíssima. Afinal, os italianos têm boa cerveja e salsichas, têm muita neve e roupa quentinha, mercadinhos de Natal maravilhosos (onde o cheiro a queijo é absolutamente inebriante).

Suspeito que ainda tenho muito por descobrir neste país de coisas estranhas, onde as pessoas se embriagam, não com cerveja ou vodka traçada, mas com vinho de altíssima qualidade. Gosto.
Até breve

sábado, 20 de novembro de 2010

Não há duas sem três



Pois, já lá vão três meses de Itália.
Tenho a dizer-vos que faço uma bela vida. Depois de trabalhar que nem uma louca os últimos anos, esta vidinha de estudante-universitária-em-lua-de-mel sabe-me a ginjas. De manhã aulas de italiano (credo, acho que me tinha esquecido de quão seca é ser aluno!), depois uma pasta ou uma pizza, um pouco de sol se houver, ou então estuda-se, passeia-se ou sei lá, coisas. A língua já dá para muita coisa, e no dia-a-dia já não é tanto um empecilho, agora começo a trabalhar a língua de alto nível, ensaios, literatura, etc. Também trabalho a pronúncia porque me começa a chatear que me perguntem sempre se sou espanhola ou sul americana.

É giro estar numa turma internacionalíssima e descobrir esta cidade que parece submersa em brumas medievais com um grupo de americanas, taiwanesas, chinesas e japoneses, ocasionalmente uma espanhola e uma georgiana.

No fundo, acabo por estar sempre ocupada, gerir a vida social de um casal não é para meninos, e embora noitadas não existam, os dias são longos e bem preenchidos, frequentemente bem regados e condimentados. Por falar em beber, um amante de cerveja passa um mau bocado em Itália. Esta malta dá no vinho e nos coktails, mas a cerveja é dividida (tipo suminho!), bebida não poucas vezes em copo de água e, pasmem-se, regularmente morta – conceito aliás que não existe em Itália. Naturalmente isto cria algumas situações engraçadas, tipo procurar copos de cerveja para ter em casa (não é fácil, e esqueçam os copos de fino, que simplesmente não há), à pergunta “quer uma cerveja de pressão” responder: “depende, que tipo de copos é que tem?”. Enfim. Vai-se bebendo vinho siciliano, que escorrega que é uma maravilha, embora seja difícil dizer não a um toscano persistente e encorpado, quem diria.

Além da cerveja, um dos pontos fracos de Itália como seguramente sabem é a política. Aqui consome-se política como os portugueses consomem José Castelo-Branco e Lili Caneças, é uma forma completamente diferente da nossa de olhar para a política que ainda não consegui compreender. Parece-me que se relaciona com algumas cisões profundas que existem em Itália, ódios regionais, problemas mal resolvidos, uma história de violência incrível que semeia um medo abismal no coração de muitos. E claro, há a máfia (vários tipos de máfia na verdade) que é como uma humidade mortal que se entranha nos ossos das pessoas, um terror que permite que se bata um homem no meio da rua e ninguém levante a cabeça, ninguém pare, ninguém olhe. De vez em quando há um presidente da câmara que diz que não a uma ameaça e depois aparece morto a tiro à porta de casa, ou num viaduto. Morto por um garoto de 20 e poucos anos contratado ou também ele ameaçado, ou, quem sabe, fascinado. Contudo algumas organizações começam a levantar a voz contra o medo. Algumas pessoas dão a cara e a vida (literalmente ou não, porque não ser morto significa viver escondido e praticamente em prisão domiciliária para toda a vida, pena estendível a toda a família). Estas pessoas são heróis obviamente amadíssimos pelos Italianos, símbolos máximos de coragem e força. Uma nova polícia especial – extremamente bem formada – começa a obter resultados impressionantes, surge pela primeira vez um mestrado sobre combate ao crime organizado. Para uma portuguesa tudo isto é estranho, irreal, ficção policial, fascinante como um abismo.

Há duas semanas fui para a apanha da azeitona e diverti-me inesperadamente muito. O fim-de-semana passado fui a Milão e adorei voltar a uma grande cidade. Milão pode não ser uma cidade linda – confirma-se – mas tem uma energia electrizante. A noite (e estamos em Novembro bem a Norte!) estava cheiíssima de gente e a diversidade de ofertas e ambientes é reconfortante e, infelizmente,  um pouco rara em Itália – país bastante ancorado às suas raízes e ao seu passado. Pontos negativos: a viagem longuíssima (5 horas num autocarro com um wc de utilização impensável), a fila de duas horas para a exposição de Salvador Dali (que ficou por ver, naturalmente) e a impossibilidade de ver a Última Ceia – com as reservas esgotadas até meados de Fevereiro. Impressionante, não?

Por fim quero apenas acrescentar que estou felicíssima, que me começo a sentir em casa e que a própria cidade me acolhe, me chama, me fascina. A praça principal (Piazza del Campo) reserva-me sempre um pouco de Sol,  a senhora do café já me sorri, o merceeiro faz conversa. O amor ajuda tantíssimo em todo este processo, e a minha alma está inchada e leve. Aquilo que me faz realmente falta – além das minhas pessoas todas – é o humor português, os trocadilhos, as ironias, as badalhoquices lindas da nossa língua, as ambiguidades, as interjeições fascinantemente profundas, a conversa da treta ritual e rítmica. Ah, e filmes na língua original, mas pelo menos, na televisão italiana há filmes ;-)

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Il Secondo




Em Itália Il secondo é o segundo prato, normalmente carne ou peixe que pode ser acompanhado por um contorno, leia-se algum tipo de verdura, batatas ou uma salada.
Não deixa de me surpreender como um país que contém uma diversidade impressionante seja absolutamente unificado no que respeita às refeições, não porque elas não sejam regionalmente diversas, mas porque a fórmula é efectivamente universal: antipasto, primo, secondo e dolce!

Mas não vou fazer desta reflexão uma ode culinária. Queria aproveitar este pretexto para expor um pouco o que me vai na alma, às vezes de forma tão desorganizada. Organizo-me…
a)      Consciência da própria língua e cultura
Uma das coisas que a teoria nos ensina, e que a prática agora me confirma, é que uma experiência de imersão numa cultura/língua é a consciência da cultura própria. Por comparação, vejo agora mais nitidamente algumas características portuguesas. Mas não muito muito, porque ainda me absorve significativamente o esforço de perceber o que é ser italiano.

b)      Consciência da língua enquanto símbolo cultural
Numa viagem relâmpago a Portugal li no avião o artigo de um linguista que falava da relação língua-cultura-pensamento. Aparentemente, algumas correntes antigas limitavam o pensamento às formas linguísticas. Parece que esta teoria está ultrapassa, num exemplo simples, lá por a palavra saudade não existir em alemão, não significa que os alemães não sintam saudade. Por outro lado, pode significar que, culturalmente, para os portugueses a saudade ocupa um lugar tal de destaque, que se criou uma palavra. Outro exemplo interessante é o da atribuição de género às coisas. Por exemplo, nas línguas latinas os objectos e não-pessoas têm género: A paz, A cadeira, O amor, O tanque. Em inglês isto não acontece, o que poderá significar que os ingleses (ou falantes de inglês) não sentem a necessidade de atribuir sexo às coisas ou não-pessoas. Enfim, escrevo tudo isto para explicar o óbvio, mas que para mim não era de todo óbvio: mudar de língua não é só mudar de palavras. É mudar a nossa relação com as palavras, é descobrir uma forma de expressão completamente diferente, eventualmente um humor completamente distinto. É encontrar novas portas linguísticas, mas também sentir outras fechar. 

c)       Consciência da língua e dos significados
Para pode usar esta nova língua, este novo sistema de forma eficaz, preciso de fazer duas coisas: pensar bem antes de falar e abdicar em definitivo das traduções directas.
Pensar antes de falar porque esta nova forma de expressão requer um esforço e uma organização mental novas para mim. E isto, para alguém tradicionalmente impulsiva como eu, é um exercício duplamente interessante.
Abdicar das traduções directas, porque elas simplesmente não existem quase nunca. Nem na língua, nem na organização administrativa, nem nos tipos de negócios da restauração, nem na estrutura académica, enfim, é impossível encontrar equivalente directos para as coisas. Aqui por exemplo, apesar de ser beber muito café, não se vai tomar café, não se convida alguém para tomar café e não se pode sequer acompanhar o dito com um belo pastel de nata, non c’è!
Estes dois exercícios combinados resultam num fenómeno curioso: tenho uma consciência muito mais aguda dos significados das palavras e expressões, porque procuro compreendê-los e não decorá-los. Palavras, expressões e frases tornam-se mundos cheios de significados muitas vezes novos. Às vezes dou por mim a pensar “esta palavra dá tanto jeito, porque é que não a temos em português?”

d)      O que é ser italiano?
Bom, penso que nunca saberei responder a esta questão (parece-me que nem os próprios italianos). Mas que me esforço, esforço.
Eu que sou por natureza resmungona e contestatária, vejo-me agora constringida a suspender os meus juízos e a questionar algumas certezas que já estavam tão arrumadinhas. Às vezes são coisas simples (pode-se entrar com um cão num restaurante ou não), outras vezes são coisas grandes. Mas para manter os níveis de boa disposição é absolutamente essencial abrir a mente, relativizar, recuar um pouco e, porque não, sorrir (parece que se se sorrir as pessoas têm menos vontade de te passar à frente numa fila ou de te atropelar – ai como me faz falta a bela ironia portuguesa!).

A maior frustração? A noção de dependência absoluta. Pelo menos por enquanto tenho um handicap social extremamente acentuado. Não consigo escrever um e-mail sozinha, preencher uma ficha de inscrição, perceber um documento oficial, responder (ou compreender) a uma oferta de trabalho. A compreensão é efectiva mas imperfeita e com falhas inesperadas. Nas situações de stress a capacidade de acção e resolução é extremamente reduzida, a língua falha. Além de precisar de ajuda para tudo, o pior é o sentimento de impotência para ajudar os outros. Não sei chamar uma ambulância, não conheço as leis, não consigo fazer recados, desconheço procedimentos e obrigações legais. Para mim, também é difícil não poder reclamar, ou não saber quando e como posso reclamar. Na prática sinto um retrocesso nos meus direitos cívicos e sociais, não é que eles sejam menores, mas eu não lhes consigo aceder.

No dia a dia oscilo entre a euforia e a resmunguice (aqui nada de novo, nada de anormal), cozinho bacalhau e atrevo-me a maquilhagens um pouco menos modestas. Já adequo formas de tratamento e níveis de conversação (pouquinho ainda) e sobretudo invento muuitas palavras!
O tempo voa e eu tento concentrar-me em não perder nada, em não deixar escapar nada, em saborear todas as pequenas vitórias. Festejo o uso correcto do modo conjuntivo com proseco (um vinho branco espumante, tipicamente bebido como aperitivo. Não, não é caro nem select…) e assinalo criteriosamente no mapa cada nova rua percorrida.
Cada dia é repleto de pequenas-grandes frustrações, retrocessos e avanços e ao mesmo tempo que mergulho neste país que começo a amar, aprendo a conhecer-me de uma forma antes desconhecida, ainda que talvez intuída.
Em suma, talvez continue na lua-de-mel, e talvez fique por lá ;-)

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Il Primo Mese



Il Primo Mese
È próprio un inizio.
Pelo menos, de tantas formas diferentes, assim o sinto. As palavras vêm-me à boca de forma diferente, híbrida.
É verdade que tudo cansa, mas também que tudo entusiasma, tudo é um desafio de interpretação e descodificação. Quando o cansaço é demasiado, as palavras enrolam-se no cérebro, e por vezes exprimem-se em línguas que nem sabia existirem. É fácil irritar-me. Mas também é mais fácil acalmar-me, convencendo-me da necessidade de alguma condescendência, de algum distanciamento. Por vezes tudo parece uma comédia relativamente previsível, mas ainda assim hilariante (já não sei usar h’s).
Uma grande parte do tempo sinto-me a redescobrir a minha infância. A maravilhar-me com a genialidade de uma forma desconhecida de panela de pressão, ou a deliciar-me com uma expressão linguística que me cria novas imagens. Por vezes faço uma rima e sinto-me estupidamente feliz.
Não aprecio ser confrontada com ignorância ou estereótipos sobre e de Portugal. Di solito (significa, normalmente, mas tem piada só usarmos o antónimo: insólito…) sinto-me ultrajada, mas depois passa um bocadinho, afinal, somos pequeninos e absolutos apenas para nós próprios.
Agora que a o domínio da língua me permite um certo à vontade, cria-se uma espécie de falsa segurança que facilmente se desvanece: os mal-entendidos são comuns, é vulgar sair de casa sem perceber bem para onde devo ir, os avisos urgentes saiem sempre em português. Não é fácil gerir a vontade de arriscar e a cautela. Piano.
Em geral tenho bastante sorte, pois esperava-me já uma espécie de família bastante decidida a apoiar-me e apaparicar-me e, porque não, amar-me.  É também verdade que tudo é relativamente parecido para não me sentir excessivamente perdida (mas também para me criar uma falsa sensação de segurança…) e que os muitos anos de teoria de aprendizagem intercultural me têm dado uma mãozinha (as hormonas também ajudam ;-b).
Também é giro não perceber bem as coisas, compreender apenas parcialmente algumas regras, como se estivesse a entrar numa peça em que conheço apenas algumas personagens e algumas deixas… entretanto também me vou habituando às “brancas”, e já não me sinto tão melindrada por elas. Aceito que não posso perceber tudo, e por vezes deixo-me simplesmente ir.
Uma coisa é certa, nenhuma teoria me preparara para este cansaço instalado, omnipresente, a que de modo nenhum se pode render, porque senão não saio da cama. É mexer-me até morrer, e aproveitar ao máximo o belo do café, ao menos valha-me esse velho amigo!
De momento forrageio ginásio (palestra), mais cursos de italiano e um mestrado (che stancheza!), levanto-me às 6h da manhã para ir para Florença (80Km) e raramente me aguento lá pela tarde. De vez em quando estudo um bocado, entretenho-me a decifrar os supermercados e tento ler a Divina Comédia para crianças, em italiano, digamos que é um belo desafio.
Ainda há muito para explorar (a noite e a vida cultural, p.e.), mas de momento confesso-me demasiado cansada para tal, primeiro quero aprender esta língua esquisita e conhecer um pouco melhor a “família”. Tomar algumas decisões para o futuro também dava jeito (mas leva tempo, quando nem uma inscrição consigo fazer sozinha…).
Bom, de momento rezo para não ficar doente e ter que explicar a um médico italiano che cosa sento.