Befana deriva do antigo grego Epifania que significava qualquer coisa como
“manifestação divina”.
Na liturgia católica é o 12º dia depois do nascimento de
Cristo, ou seja 6 de janeiro, também chamado dia dos reis. Em Itália é também o
dia da Befana que é, nada mais nada menos, do que uma bruxa.
Uma bruxa velha e feia, com os vestidos e as botas rotas, que
voando na sua vassoura visita todas as crianças no dia 6 de janeiro. Esperando
a sua visita, as crianças penduram meias à lareira onde a bruxinha deixa os
seus presentes: carvão para as crianças mal comportadas, doces para as crianças
bem comportadas. São óbvias as raízes pagãs desta lenda italiana e é
impressionante como sobreviveu ao longo dos tempos num país profundamente
católico como Itália.
Mas não se pense que o catolicismo na bota se manifesta de
modo semelhante àquele que encontramos em Portugal. Aqui, como aliás é típico
em Itália, as facções dividem-se de modo feroz e muitas vezes extremista. Enquanto
em Portugal o Papa e o Vaticano eram(são?) entidades praticamente míticas a
quem a distância conferia quase uma aura divina (excepto para os reis e diplomatas
que se viam obrigados a negociar com o papa e delegações papais), em Itália
durante séculos o Papa era também um Rei (dos Estados Papais) e um guerreiro, e
portanto muitas vezes o saqueador, um político corrupto, um senhor da guerra.
Neste cenário, obviamente religião e Papa não andavam sempre de mãos dadas e
portanto sobrevive na tradição popular uma religiosidade quase protestante,
emanada directamente da Bíblia e sem passar pelo Papa, pelo Vaticano e pelas
igrejas.
Mesmo as igrejas, convém dizê-lo, são mais do povo do que do Vaticano,
e o povo, já se sabe, é religioso até onde lhe convém, quando lhe convém e como
lhe convém. Prosperam pelo território mitos, santos e rituais católicos não
reconhecidos e até proibidos pelo Vaticano, mas felizmente nos dias que correm
o poder judicial do sequazes do Papa é limitado aos confins do Vaticano (pelo
menos em teoria).
Voltando à bruxinha Befana, obviamente ela não é reconhecida
pela Santa Sé (deus nos livre!), o que não a impede de andar a fazer acrobacias
em cima duma vassoura todos os 6 de Janeiro. Para os italianos marca o fim das
festas e o voltar à vida normal. É quando recomeçam as dietas e quando os
garotos voltam à escola. Reabrem as repartições e a malta volta a ler os
e-mails. Mas atenção, desejar um bom dia da Befana a uma rapariga/senhora
provoca risinhos irritados, é que é como dizer-lhe que ela é feia como a
Befana… humor italiano.
Depois do primeiro Natal e da primeira passagem de ano (com
uma pitada de febre e a ver os aristogatos com os pais), foi também a primeira
Befana do Tiago. É claro que ignorando o facto de ele ter apenas 7 meses e não
perceber nada do que se estava a passar, pusemos o catraio no carrinho bem
agasalhado e lá fomos nós para a mítica Piazza del Campo de onde uma radical
Befana desceu da Torre del Mangia em versão rapel-com-vassoura dançando pelo ar
e atirando rebuçados para a multidão de miúdos (e graúdos) cá em baixo.
Naturalmente o Tiago estava mais interessado em olhar para toda aquela gente
aos molhos com o telefone na mão a fazer luzinhas, mas ao contrário da mãe, o
Tiago nunca se lembrará da sua primeira Befana, como eu não me lembro do meu
primeiro Natal. É um ritual inscrito no DNA cultural do Tiago, como o seu
primeiro banho no Atlântico, ou a sua primeira viagem de avião. Para ele estas
coisas nunca terão tido uma primeira vez, terão existido sempre, como a mãe, o
pai e os avós. As viagens entre Itália e Portugal, a sintonização entre uma
língua e outra, a pasta e o caldo
verde.
Efectivamente, observar o Tiago é como ter aulas práticas de
evolucionismo. Passar dos sorrisos involuntários às
gargalhadas-cheias-de-vontade é como viver milhões de anos. Vê-lo a resmungar
porque quer que alguém o leve a passear… e depois enquanto caminha apoiado
pelas mãos vê-lo virar-se e fazer um sorriso enorme que diz: “olha p’a mim!” é
evolução e magia ao mesmo tempo.
Perder horas a observar o seu ar concentrado
enquanto esmigalha um bocadito de brócolo, rir-se do modo como morde os lábios
quando faz um esforço, apanhá-lo em posição de gatinhar, mas depois parar
porque não sabe bem o que fazer daquilo… enfim. E depois um dia, perlimpimpim,
hei-lo que faz qualquer coisa que nunca tinha feito. Apoia as mãos no vão da
cama e levanta-se sozinho, levanta os braços para pedir colo, toca tambor com
uma colher, abre uma gaveta, acende a luz (durante dois minutos seguidos). E
depois, olha para ti e sorri, e tu pensas: porra é este o sentido da evolução,
assistir a este sorriso, existir para o prolongar o mais possível. Isto é o
instinto. Algo quimicamente tão forte que ninguém minimamente saudável lhe pode
resistir. E sem palavras. Sem argumentos. Só aquele sorriso com a força de
milhões e milhões de anos de evolução.
Vêem? É nisto que dá ser mãe, começar a falar da Befana e
acabar (sempre) a falar do Tiago. Não vale a pena resistir.