Diz-se que muitas mulheres não se
recordam bem do seu parto, ou que guardam dele uma imagem distorcida, confusa.
Uma das principais culpadas desta espécie de amnésia do parto é a endorfina,
produzida em quantidades consideráveis pela mulher durante o parto. A endorfina
é uma espécie de morfina natural que aumenta a resistência à dor (se assim não
fosse a maioria das mulheres perderia os sentidos durante o parto, já que a dor
real estimada do mesmo é aproximada à da amputação de uma perna), aumenta a
resistência dos vasos sanguíneos, aumenta a resistência física e psicológica e
a capacidade de concentração; também induz alterações na percepção do tempo, ou
seja, durante o parto a mulher está com uma grande moca natural. E ainda bem,
acrescento.
Dada a experiência avassaladora
que foi para mim, antes que a memória e o tempo me comecem a pregar partidas,
queria descrevê-la, gravá-la em palavras escritas. Algumas coisas já se
começaram a perder, mas com a ajuda do Cesco consigo recordar-me de quase tudo.
Antes de entrar propriamente no
cerne da questão, gostaria de fazer uma pequena introdução técnica ao
“mundo-secreto-das-grávidas”. Há que saber que a data prevista do parto é
marcada para o fim da 40ªsemana depois da última menstruação da mulher. Um bebé
nascido depois da 36ªsemana já não é prematuro porque já está plenamente
formado, falta só crescer mais um bocadinho. Quando o parto se aproxima, o colo
do útero – até ali fechado – começa a abrir, é a famosa dilatação que é máxima
aos 10cm. Para abrir o colo do útero, o útero deve contrair (por sua vez as
contracções uterinas são em parte provocadas pela oxitocina, hormona do “amor”,
dos “miminhos”) forçando a abertura do colo e mais tarde a descida do pequenito.
O trabalho de parto divide-se
grosso modo em três fases caraterizadas pelo tipo de contrações. A primeira
fase é uma fase anárquica, em que as contrações são relativamente suportáveis,
esporádicas e de intensidade variável. É uma fase de preparação do colo e que
pode demorar várias horas mas também alguns dias. Durante esta fase o colo do
útero tende a dilatar cerca de 2cm.
A fase seguinte é a do trabalho
de parto activo, aqui as contrações são muito seguidas (menos de 5minutos de
intervalo) e longas (mais de 40seg). Demora em média 6-8horas e as contrações
aumentam de intensidade até à dilatação completa. Quando se está com dilatação
completa (mais ou menos 10cm) começa a fase do parto propriamente dito ou fase
expulsiva. Aqui a tipologia de dores muda, e as contrações são acompanhadas de
uma forte vontade de “empurrar” (na verdade uma sensação assustadoramente
semelhante à urgência em ir à casa-de-banho). Esta fase pode demorar de alguns
minutos a 2 horas.
Depois desta introdução, vamos ao
que interessa, quem não tem o mínimo interesse em saber como foi o meu parto,
este é o momento de parar de ler…
Depois de um dia no passeio,
continuo a sentir pequenas perdas de líquido. Sei que a ruptura das membranas é
um alerta vermelho e que significa ir imediatamente para o hospital, mas as
minhas perdas são tão poucas e espaçadas
que quase me convenço de ter desenvolvido uma espécie de incontinência
gravídica. De qualquer maneira ao fim do dia atinjo o meu limite de especulação
e decido ir ao hospital fazer a habitual figura triste dos futuros-novos-papás
que não percebem patavina do que se está a passar. Em vez de ir ao hospital
mais perto, decido-me por aquele a meia-hora de casa, onde eu gostaria de parir
e, porque nunca se sabe, meto as malas no carro.
Chego ao hospital às 21h00 e as
obstetras ligam-me imediatamente à máquina que permite controlar o batido
cardíaco do meu filhote apressado. Tudo ok. “Visitam-me” (é este o termo
técnico italiano, parece-me muito apropriado para a situação em que uma médica
te enfia os dedos naquele canal para ver o que é que se passa) e além de 2cm de
dilatação (na norma) tenho nitidamente uma ruptura pequenita nas membranas. Ora
aqui vai um antibiótico depois de três furos nos braços (as veias estavam
escondiditas…).
No meio deste lufa-lufa
apercebemo-nos que já não volto a casa tão cedo. O Cesco, por outro lado, não
pode ficar porque tecnicamente não estou em trabalho de parto activo e não há
nenhum quarto vazio (os quartos são duplos).
Levam-me para o meu quarto onde
me espera uma convidativa cama de hospital ao lado de uma neo-mamã senegalense
rodeada pela sua família numerosa. O terror invade-me. Se há coisas para as
quais não estou preparada no momento é ter que afrontar público, olhos curiosos ou indiscretos. Passa das 22h00 e o
Cesco sai em busca de jantar. Naquele quarto cheio de gente que come comida com
perfume de outros continentes a solidão invade-me como uma mão pesada e
sufocante sobre o ombro. O buraquinho do meu saco amniótico era tão pequeno e
as minhas contrações tão insignificantes que as obstetras e a ginecóloga estão
convencidas que daí a umas 12 horas terão de me induzir o parto. Com a indução
do parto lá se vai o meu “percurso de parto doce”, com o super apartamento com
banheira de parto, atmosfera íntima e aconchegante. Não é exactamente o início
que eu tinha desejado.
Finalmente chega o Cesco e com
ele uma lufada de ar fresco, o sentido das coisas. A família da minha
companheira de quarto retira-se. Com esta espécie de bolha de intimidade eu e o
futuro pai comemos, conversamos e rimos. Estamos sempre a tempo de relativizar
a questão e de troçar das nossas certezas apenas demolidas.
Mas também este momento de calor
é destinado a acabar e o Cesco volta para casa.
Na minha cama de hospital,
demasiado alta e estreita para me ser familiar as trevas descem de novo sobre o
meu humor. Toda eu sou este coração enorme que bombeia ruidosamente, não sinto
mais nada, todo o meu corpo se encolheu dentro desta muralha musculosa e
incessante. O medo é tão forte (medo de quê?) que a única forma segura para
o aguentar é sair dele e olhá-lo de fora, racionalizá-lo, gozá-lo um bocadinho.
Chegam algumas mensagens de longe que me trazem conforto, é tudo normal,
natural, regular, até mesmo o medo. Durmo quase uma hora, depois o choro do
recém-nascido da cama ao lado traz-me de volta àquela cama estranha. Sinto-me
exausta, esgotada, mas não consigo sequer manter os olhos fechados.
Às quatro da manhã começam
algumas daquelas dores que agora sei serem contrações. Boa, penso. Ao menos é
algo com que me entreter. Levanto-me e começo a andar para a frente e para trás
no corredor, cronometrando as contrações e os intervalos entre elas. Sinto-me
produtiva, sinto que tenho o controlo. Quando as contrações me parecem
suficientemente regulares vou procurar a obstetra. Liga-me à maquineta que
controla o ritmo cardíaco do Tiago e a intensidade das contrações. Ajuda-me a
passar as mais fortes com palavras doces e uma voz calma, é-me preciosa a sua companhia.
Depois “visita-me”: 3cm de dilatação, falta muita estrada. Como estou muito
cansada, aconselha-me a ir para a cama e tentar dormir entre as contrações. São
5horas e telefono ao Cesco: começou, mas ainda vai demorar, vem com calma.
Durante um hora e meia (que
sinceramente me pareceu muito menos) sinto as contrações a aumentarem “pouco a
pouco” de intensidade. Forço-me a recordar todas as técnicas aprendidas no
curso pré-parto: respiração, vocalização, visualização… em muitas contrações
sinto-me completamente perdida, alienada, era só aquela dor alucinante que me
domina o corpo e me empurra a cabeça para trás, como se tivesse necessidade de
se separar do resto d corpo (merda, que ideia tão estúpida esta de não querer a
epidural!). Às vezes o controlo volta, em lampos de lucidez, e por momentos
acalento a ilusão de poder controlar a dor, vergá-la à minha vontade. Às tantas
vejo-me chegar ao meu limite, vi-o nitidamente diante de mim e ligo às
obstetras: não consigo continuar sozinha (murmurei ou gritei?).
Chegam três obstetras que eu não
conheço (era a mudança de turno) e contemporaneamente o Francesco. Volto a
sentir um grande alívio. As obstetras falam um bocadinho comigo e voltam a
sair, voltarão um pouco depois para ver como estou (havendo 3cm de dilatação há
apenas uma hora e meia, a experiência diz-lhes que ainda falta…).
A par com as dores invade-me um
calor insuportável, não consigo suportar encostar-me a nada e nem mesmo uma carícia.
Volto ao corredor, desta vez com o futuro-pai ao meu lado. Durante as
contrações apoia-me fisicamente já que é impossível manter-me em pé, mas não
há muito mais que possa fazer.
De repente tenho uma vontade monstruosa de ir à
casa de banho. Amaldiçoo esta partida da natureza, que raio de momento. Assim
que me sento na sanita e tento chamar a mim as poucas reservas de capacidade de
raciocínio que ainda tenho (não era uma situação fácil de gerir) apercebo-me
que não era vontade de ir à casa de banho, era o Tiago a querer sair. A minha
cabeça grita impossível (sei que ainda faltam tantas horas!) e consigo pedir ao
Francesco para chamar as obstetras com urgência. Chega uma imediatamente que me
controla o colo do útero: estás pronta! Não é possível, exclamo, desta vez em
voz alta, quanto tenho de dilatação? Tudo, dilatação completa minha querida,
vamos para a sala de parto.
Apesar dos meus protestos
intensos a obstetra e o Francesco conseguem meter-me em cima da minha cama. A
esta altura todas as noções de pudor se tinham completamente desvanecido e eu
estava pronta para atravessar os vários corredores nua tal era o calor que
tinha. Lá aceitei que me cobrissem o corpo com um lençol e daí a pouco estava
na sala parto com a obstetra a tentar convencer-me a ir para o banco holandês (para
quem não faz ideia do que isto seja: http://www.mipaonline.com/wp-content/uploads/2012/07/sgabello-olandese.png)
enquanto eu resmungava que não queria sair da cama. A obstetra era boa, e lá me
deu a volta. Sentei-me no banquinho, apoiada nas pernas do Francesco que estava
sentado numa cadeira atrás de mim. E lá vou eu. Nem queria acreditar. As dores
acalmaram um bocadinho, não que não doesse, mas agora as contrações eram acompanhadas
pelo enorme esforço de empurrar e isso de qualquer maneira aliviava-me.
Muita gente me disse que no
momento do parto, saber que o teu filho está a chegar é uma grande alegria que
ajuda a passar o momento. Muito sinceramente, naquele momento eu estava-me a
marimbar para isso. Empurrava para que tudo acabasse, para poder beber um copo
de água e dormir um bocadinho, não me importava nada do garoto.
Até que ele saiu, cinzento,
resmungão, de braços e pernas abertas como um esquilo voador, e a obstetra mo
pôs assim como veio ao mundo em cima da minha barriga. O mundo parou. Senti que
era uma espécie de máquina fotográfica e que as minhas lentes e diafragma se
reajustavam. Uma injecção imaginária de energia e repouso fez-me relaxar de um
modo incrível, como se alguém retirasse de cima de mim aquele cansaço dorido e
insuportável. Não era horrível. Não era feio. Não era nada do que eu esperava,
e era o meu filho – eu tinha um filho! Demorei algum tempo a “voltar” à sala e
a perceber o que se passava à minha volta. A obstetra conduziu-me para uma
marquesa – sempre com o meu filho – onde me tirou a placenta e deu os pontos.
Foi uma dor horrível, mas eu desprezei-a.
Meteram-me noutra cama e, por duas
horas, com o Francesco em êxtase ao meu lado, fizemos o primeiro “pele-a-pele”,
a primeira mamada e eu tornei-me mãe. E desde esse momento até agora, se me
permito de pensar muito nisso, não consigo evitar as lágrimas de alegria, medo
do futuro, incrédula admiração por esta magia poderosa.
Bem vindo Tiago.