sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O Tempo com Tiago




Seis meses depois do nascimento de Tiago o mundo parece não se ter apercebido deste milagre. Basta assistir a um telejornal para constatar que vai tudo mais ou menos na mesma, o que acho fracamente incompreensível, já que a meu ver no dia 17 de Maio todo o mundo e o seu significado mudou. Na verdade sinto-me escandalizada com a falta de respeito dos nossos respectivos presidentes da República, Napolitano e Cavaco, que ainda não se dignaram a enviar-me felicitações oficiais (ok, aquelas do Cavaco até podia dispensar, mas é uma questão de princípio).

Uma das maiores mudanças que trouxe Tiago ao mundo foi a percepção do tempo. Já Einstein tinha dito que é relativo, mas agora é relativo e absoluto ao mesmo tempo, discreto e contínuo. Qualquer mãe e qualquer pai sabe que a gestão do tempo nunca mais será o que era antes da chegada dos herdeiros. Acabou-se o arranjo-me em cinco minutos ou a cerveja sem olhar para o relógio depois do trabalho. Claro que há pais de todos os tipos (muitos destes tipos em guerra como já se viu), mas de qualquer modo a percepção do tempo nunca fica incólume às grandes mudanças.

A mim por exemplo, caiu de repente a mortalidade sobre os ombros – deve ser por isso que agora me doem tanto. Apercebi-me de que a minha adolescência acabou, a minha juventude. Não o digo no sentido físico, mas no contexto do meu ciclo de vida. Não terei mais preocupações despreocupadas, não voltarei a ter a liberdade de decidir mudar de vida sem dar contas a ninguém, não comprarei ao improviso um bilhete de avião sabe-se lá para onde. É claro que o surpreendente não acabou na minha vida, nem a novidade, nem a aventura, mas a despreocupação e a independência absoluta sim. 
São os pais que são dependentes dos filhos, não o contrário.

Apercebi-me também de que, não tendo escrito nenhuma obra de arte, não tendo sido presidente de nada ou ninguém, a minha existência é efémera, uma variável discreta, pontual, finita. Daqui a 200 anos eu ter existido ou não será igual ao litro. Para quem não consegue inscrever o seu nome nos livros de História, a imortalidade é biológica, é por isso que a família é tão importante, porque é a nossa imortalidade, daqui a 200 anos eu existirei só através dos meus descendentes. Provavelmente não existirei sequer na sua memória, mas nos seus gestos, quem sabe numa expressão facial ou num jeito particular do lábio.

Mas olhando Tiago, estando a ter a oportunidade de vê-lo crescer dia após dia, todas estas reflexões são ninharias comparadas com a possibilidade que o Tiago me está a dar de, de certo modo, ver o tempo através dele. Para o Tiago, o tempo não é contínuo, é instantâneo. É desprovido de passado e de futuro, não tem medos, não tem culpas, receios, traumas, nada, é uma alma em estado puro.
Quando tem fome e chora com todos os pulmões, chora porque a fome é de sempre e para sempre, ele não sabe que a fome passará, não sabe que basta esperar 5 segundos que eu me sente no sítio certo e depois lhe pegarei ao colo para saciar a sua fome, para ele o momento é eterno. Quando acorda ao escuro, também o escuro é eterno, o escuro, a solidão que ele implica e o medo, então chora, porque também esse medo é eterno. E quando o pego ao colo, o abraço com força e o seu rosto se encosta ainda a fungar ao meu pescoço, ele acalma-se, porque sabe que este abraço é eterno, é para sempre, e que sempre que ele chorar desesperado, o abraço, o calor e o pescoço da mãe ou do pai estarão ali para ele, eternamente. Quando ri o Tiago, também ri para sempre. Ri com uma gargalhada inexperiente com a boca e com a alma todas, porque o mundo inteiro é aquele riso. Mesmo que a brincadeira se repita 10 voltas, 11, 12, é sempre como a primeira, é sempre a única, e o seu riso é uma inundação sem barreiras, sem confins.

Uma derivada directa do tempo é a memória, e agora o Tiago começa a desenvolver alguma, reconhece o pai e duas ou três pessoas com que se encontra mais do que uma vez por semana. Quando o pai chega a casa, ri-se com o corpo inteiro, a boca abre, as pernocas e os braços dançam, porque é como se o pai estivesse estado sempre fora, e aquele momento em que chega fosse para sempre, e portanto a felicidade é máxima., é física, e exprime-se com o corpo todo.

Este poder, esta força, esta intensidade no viver a vida são contagiosos, e nós pais sentimo-nos mais mortais como comecei por dizer – mas também paradoxalmente mais imortais, porque o instante se alonga, estica-se, porque é puro, privo de todas as frustrações e desilusões, e cheio de todas as possibilidades. Afinal para o Tiago ver uma bruxa que se passeia na sua vassoura é tão surpreendente como o brilho que vem do telefone do pai ou como o gato que exibe a cauda felpuda à janela da vizinha. Esta condição de pureza destituída de passado e feita toda de um futuro incerto e potencialmente infinito faz com que todas as reacções do Tiago sejam exageradamente genuínas. Para mim (nós?) adulta que passou a vida a ter que aprender a controlar certas emoções, é um banho diário de rejuvenescimento infantil, uma espécie de segunda infância vivida na terceira pessoa. Sem esta poção mágica, sem os risos incontroláveis, sem o divertimento garantido que é ter um bebé (este bebé!) por perto, provavelmente seria impossível sobreviver a todas as noites mal dormidas… mas não é :-)