quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Il Secondo




Em Itália Il secondo é o segundo prato, normalmente carne ou peixe que pode ser acompanhado por um contorno, leia-se algum tipo de verdura, batatas ou uma salada.
Não deixa de me surpreender como um país que contém uma diversidade impressionante seja absolutamente unificado no que respeita às refeições, não porque elas não sejam regionalmente diversas, mas porque a fórmula é efectivamente universal: antipasto, primo, secondo e dolce!

Mas não vou fazer desta reflexão uma ode culinária. Queria aproveitar este pretexto para expor um pouco o que me vai na alma, às vezes de forma tão desorganizada. Organizo-me…
a)      Consciência da própria língua e cultura
Uma das coisas que a teoria nos ensina, e que a prática agora me confirma, é que uma experiência de imersão numa cultura/língua é a consciência da cultura própria. Por comparação, vejo agora mais nitidamente algumas características portuguesas. Mas não muito muito, porque ainda me absorve significativamente o esforço de perceber o que é ser italiano.

b)      Consciência da língua enquanto símbolo cultural
Numa viagem relâmpago a Portugal li no avião o artigo de um linguista que falava da relação língua-cultura-pensamento. Aparentemente, algumas correntes antigas limitavam o pensamento às formas linguísticas. Parece que esta teoria está ultrapassa, num exemplo simples, lá por a palavra saudade não existir em alemão, não significa que os alemães não sintam saudade. Por outro lado, pode significar que, culturalmente, para os portugueses a saudade ocupa um lugar tal de destaque, que se criou uma palavra. Outro exemplo interessante é o da atribuição de género às coisas. Por exemplo, nas línguas latinas os objectos e não-pessoas têm género: A paz, A cadeira, O amor, O tanque. Em inglês isto não acontece, o que poderá significar que os ingleses (ou falantes de inglês) não sentem a necessidade de atribuir sexo às coisas ou não-pessoas. Enfim, escrevo tudo isto para explicar o óbvio, mas que para mim não era de todo óbvio: mudar de língua não é só mudar de palavras. É mudar a nossa relação com as palavras, é descobrir uma forma de expressão completamente diferente, eventualmente um humor completamente distinto. É encontrar novas portas linguísticas, mas também sentir outras fechar. 

c)       Consciência da língua e dos significados
Para pode usar esta nova língua, este novo sistema de forma eficaz, preciso de fazer duas coisas: pensar bem antes de falar e abdicar em definitivo das traduções directas.
Pensar antes de falar porque esta nova forma de expressão requer um esforço e uma organização mental novas para mim. E isto, para alguém tradicionalmente impulsiva como eu, é um exercício duplamente interessante.
Abdicar das traduções directas, porque elas simplesmente não existem quase nunca. Nem na língua, nem na organização administrativa, nem nos tipos de negócios da restauração, nem na estrutura académica, enfim, é impossível encontrar equivalente directos para as coisas. Aqui por exemplo, apesar de ser beber muito café, não se vai tomar café, não se convida alguém para tomar café e não se pode sequer acompanhar o dito com um belo pastel de nata, non c’è!
Estes dois exercícios combinados resultam num fenómeno curioso: tenho uma consciência muito mais aguda dos significados das palavras e expressões, porque procuro compreendê-los e não decorá-los. Palavras, expressões e frases tornam-se mundos cheios de significados muitas vezes novos. Às vezes dou por mim a pensar “esta palavra dá tanto jeito, porque é que não a temos em português?”

d)      O que é ser italiano?
Bom, penso que nunca saberei responder a esta questão (parece-me que nem os próprios italianos). Mas que me esforço, esforço.
Eu que sou por natureza resmungona e contestatária, vejo-me agora constringida a suspender os meus juízos e a questionar algumas certezas que já estavam tão arrumadinhas. Às vezes são coisas simples (pode-se entrar com um cão num restaurante ou não), outras vezes são coisas grandes. Mas para manter os níveis de boa disposição é absolutamente essencial abrir a mente, relativizar, recuar um pouco e, porque não, sorrir (parece que se se sorrir as pessoas têm menos vontade de te passar à frente numa fila ou de te atropelar – ai como me faz falta a bela ironia portuguesa!).

A maior frustração? A noção de dependência absoluta. Pelo menos por enquanto tenho um handicap social extremamente acentuado. Não consigo escrever um e-mail sozinha, preencher uma ficha de inscrição, perceber um documento oficial, responder (ou compreender) a uma oferta de trabalho. A compreensão é efectiva mas imperfeita e com falhas inesperadas. Nas situações de stress a capacidade de acção e resolução é extremamente reduzida, a língua falha. Além de precisar de ajuda para tudo, o pior é o sentimento de impotência para ajudar os outros. Não sei chamar uma ambulância, não conheço as leis, não consigo fazer recados, desconheço procedimentos e obrigações legais. Para mim, também é difícil não poder reclamar, ou não saber quando e como posso reclamar. Na prática sinto um retrocesso nos meus direitos cívicos e sociais, não é que eles sejam menores, mas eu não lhes consigo aceder.

No dia a dia oscilo entre a euforia e a resmunguice (aqui nada de novo, nada de anormal), cozinho bacalhau e atrevo-me a maquilhagens um pouco menos modestas. Já adequo formas de tratamento e níveis de conversação (pouquinho ainda) e sobretudo invento muuitas palavras!
O tempo voa e eu tento concentrar-me em não perder nada, em não deixar escapar nada, em saborear todas as pequenas vitórias. Festejo o uso correcto do modo conjuntivo com proseco (um vinho branco espumante, tipicamente bebido como aperitivo. Não, não é caro nem select…) e assinalo criteriosamente no mapa cada nova rua percorrida.
Cada dia é repleto de pequenas-grandes frustrações, retrocessos e avanços e ao mesmo tempo que mergulho neste país que começo a amar, aprendo a conhecer-me de uma forma antes desconhecida, ainda que talvez intuída.
Em suma, talvez continue na lua-de-mel, e talvez fique por lá ;-)