Em Itália Il secondo é
o segundo prato, normalmente carne ou peixe que pode ser acompanhado por um contorno, leia-se algum tipo de verdura,
batatas ou uma salada.
Não deixa de me surpreender como um país que contém uma
diversidade impressionante seja absolutamente unificado no que respeita às
refeições, não porque elas não sejam regionalmente diversas, mas porque a
fórmula é efectivamente universal: antipasto, primo, secondo e dolce!
Mas não vou fazer desta reflexão uma ode culinária. Queria
aproveitar este pretexto para expor um pouco o que me vai na alma, às vezes de
forma tão desorganizada. Organizo-me…
a) Consciência
da própria língua e cultura
Uma das coisas que a teoria nos ensina, e que a prática
agora me confirma, é que uma experiência de imersão numa cultura/língua é a
consciência da cultura própria. Por comparação, vejo agora mais nitidamente algumas
características portuguesas. Mas não muito muito, porque ainda me absorve
significativamente o esforço de perceber o que é ser italiano.
b) Consciência
da língua enquanto símbolo cultural
Numa viagem relâmpago a Portugal li no avião o artigo de um
linguista que falava da relação língua-cultura-pensamento. Aparentemente,
algumas correntes antigas limitavam o pensamento às formas linguísticas. Parece
que esta teoria está ultrapassa, num exemplo simples, lá por a palavra saudade
não existir em alemão, não significa que os alemães não sintam saudade. Por
outro lado, pode significar que, culturalmente, para os portugueses a saudade
ocupa um lugar tal de destaque, que se criou uma palavra. Outro exemplo
interessante é o da atribuição de género às coisas. Por exemplo, nas línguas
latinas os objectos e não-pessoas têm género: A paz, A cadeira, O amor, O
tanque. Em inglês isto não acontece, o que poderá significar que os ingleses
(ou falantes de inglês) não sentem a necessidade de atribuir sexo às coisas ou
não-pessoas. Enfim, escrevo tudo isto para explicar o óbvio, mas que para mim
não era de todo óbvio: mudar de língua não é só mudar de palavras. É mudar a
nossa relação com as palavras, é descobrir uma forma de expressão completamente
diferente, eventualmente um humor completamente distinto. É encontrar novas
portas linguísticas, mas também sentir outras fechar.
c) Consciência
da língua e dos significados
Para pode usar esta nova língua, este novo sistema de forma
eficaz, preciso de fazer duas coisas: pensar bem antes de falar e abdicar em
definitivo das traduções directas.
Pensar antes de falar porque esta nova forma de expressão
requer um esforço e uma organização mental novas para mim. E isto, para alguém
tradicionalmente impulsiva como eu, é um exercício duplamente interessante.
Abdicar das traduções directas, porque elas simplesmente não
existem quase nunca. Nem na língua, nem na organização administrativa, nem nos
tipos de negócios da restauração, nem na estrutura académica, enfim, é
impossível encontrar equivalente directos para as coisas. Aqui por exemplo,
apesar de ser beber muito café, não se vai tomar café, não se convida alguém
para tomar café e não se pode sequer acompanhar o dito com um belo pastel de
nata, non c’è!
Estes dois exercícios combinados resultam num fenómeno
curioso: tenho uma consciência muito mais aguda dos significados das palavras e
expressões, porque procuro compreendê-los e não decorá-los. Palavras,
expressões e frases tornam-se mundos cheios de significados muitas vezes novos.
Às vezes dou por mim a pensar “esta palavra dá tanto jeito, porque é que não a
temos em português?”
d) O
que é ser italiano?
Bom, penso que nunca saberei responder a esta questão
(parece-me que nem os próprios italianos). Mas que me esforço, esforço.
Eu que sou por natureza resmungona e contestatária, vejo-me
agora constringida a suspender os meus juízos e a questionar algumas certezas que
já estavam tão arrumadinhas. Às vezes são coisas simples (pode-se entrar com um
cão num restaurante ou não), outras vezes são coisas grandes. Mas para manter
os níveis de boa disposição é absolutamente essencial abrir a mente,
relativizar, recuar um pouco e, porque não, sorrir (parece que se se sorrir as
pessoas têm menos vontade de te passar à frente numa fila ou de te atropelar –
ai como me faz falta a bela ironia portuguesa!).
A maior frustração? A noção de dependência absoluta. Pelo
menos por enquanto tenho um handicap
social extremamente acentuado. Não consigo escrever um e-mail sozinha,
preencher uma ficha de inscrição, perceber um documento oficial, responder (ou
compreender) a uma oferta de trabalho. A compreensão é efectiva mas imperfeita
e com falhas inesperadas. Nas situações de stress a capacidade de acção e
resolução é extremamente reduzida, a língua falha. Além de precisar de ajuda
para tudo, o pior é o sentimento de impotência para ajudar os outros. Não sei
chamar uma ambulância, não conheço as leis, não consigo fazer recados,
desconheço procedimentos e obrigações legais. Para mim, também é difícil não
poder reclamar, ou não saber quando e como posso reclamar. Na prática sinto um
retrocesso nos meus direitos cívicos e sociais, não é que eles sejam menores,
mas eu não lhes consigo aceder.
No dia a dia oscilo entre a euforia e a resmunguice (aqui
nada de novo, nada de anormal), cozinho bacalhau e atrevo-me a maquilhagens um
pouco menos modestas. Já adequo formas de tratamento e níveis de conversação
(pouquinho ainda) e sobretudo invento muuitas palavras!
O tempo voa e eu tento concentrar-me em não perder nada, em
não deixar escapar nada, em saborear todas as pequenas vitórias. Festejo o uso
correcto do modo conjuntivo com proseco
(um vinho branco espumante, tipicamente bebido como aperitivo. Não, não é caro
nem select…) e assinalo
criteriosamente no mapa cada nova rua percorrida.
Cada dia é repleto de pequenas-grandes frustrações,
retrocessos e avanços e ao mesmo tempo que mergulho neste país que começo a
amar, aprendo a conhecer-me de uma forma antes desconhecida, ainda que talvez
intuída.
Em suma, talvez continue na lua-de-mel, e talvez fique por
lá ;-)