sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Os Sons de Siena




A Primavera traz quase sempre novos sons aos dias

Os passarinhos que cantam (alguém imaginou logo a Aurora que passeia ligeira pelo bosque?), os adolescentes que falam e riem mais alto pelos corredores das escolas e nas paragens de autocarro, as andorinhas que enchem os céus de ti-ti-ti. Para quem se diverte a observar as pessoas que passam não passará despercebido que a Primavera também é uma época de estranhas passerelles: nas ruas agora mais afoladas cruzam-se casacos com sandálias, botas e t-shirts, calções e collants de lã, como se algumas pessoas ainda não tivessem saído do Inverno, e outras já tivessem entrado no Verão.
Siena é uma cidade de urbanização medieval-renascentista afolada dentro de uma cintura de muralhas com sete portas. Coroa um dos muitos montes da Toscana e em seu redor espreguiçam-se longas paisagens onduladas que a Primavera carrega de verde brilhante e de vivas cores floreais.

Apesar das suas peculiaridades, também em Siena os adolescentes falam mais alto na Primavera e as andorinhas enchem os céus de acrobacias musicais: ti-ti-ti ti-ti-ti. São aos milhares. Descendo até à Piazza del Campo ao fim do dia, o azzurro forte do céu é o cenário perfeito para este bando de pequenos arautos da luz e das flores. Das janelas dos prédios centenários é vê-las dançar em perfeita sintonia por entre torres alaranjadas, chaminés e telhados.

Mas em Siena, as Andorinhas não são os únicos arautos da Primavera. Nas sinuosas estradinhas toscanas, perdidas entre o verde do milhos, o roxo da lavanda ou o amarelo forte dos girassóis, as motas – hibernadas em garagens mais ou menos arejadas durante todo o rigoroso Inverno – saem à rua em zumbidos musicais. A mim dá-me sono, mas vejo que são portadores de grande vitalidade, vejo-o nas faces avermelhadas dos casais vestidos de cabedal negro ou cinzento que passeiam pelas quelhas estreitas e agora solarengas, uma pausa nas suas peregrinações primaveris.
Andorinhas e motas.

Em Siena, o verdadeiro rei dos arautos da Primavera, o som que ribomba por toda a cidade anunciando com pompa e circunstância a chegada da Primavera, do sol, do bom tempo, esse é, ou melhor, são os tambores. Todas as contrade iniciam os cursos de tambores. Os rapazes saem à rua e praticam as “tamboradas” o ritmo é quase sempre o mesmo catum-catum-catum-tum-tum. Os padroeiros de cada contrada (bairro medieval), não por acaso são todos na primavera e verão, e nesses dias é vê-los vestidos de pompa e circunstâncias a desfilar pelas ruas (visitando as outras contrade que lhes servem lanchinhos) ao som dos tambores. Em cada recanto da cidade, em cada pedaço de verde nos persegue este catum-tum-tum, para uns irritante, mas que fechando os olhos, ou deixando-os um bocadinho de nada abertos (como na praia quando nos viramos para o sol), a  luz dourada reflectida no laranja das casas de janelas verdes e no verde potente dos campos ao longe, é a música de fundo perfeita para este ambiente, uma porta mágica para uma viagem no tempo, um acesso privilegiado a uma corrente de deambulações mentais.

Agora vai-se fazendo anunciar o Outono, o alter-ego da Primavera. Coexistem pelas ruas e ruelas botas e sandálias, calções e chapéus de chuva, mas as andorinhas já foram cantar para outros continentes, os tambores arrumaram-se empilhados nos arrumos das contrade e as motas foram estacionadas nas garagens, cobertas com longas mantas de sono.
Nas vitrines das lojas cachecóis e longos sobretudos tiram as dúvidas, o Outono está a chegar. Ainda podemos sair sem meias, sair sem chapéu de chuva, mas as ruas fecham mais cedo e já jantamos sem o Sol.

Adeus andorinhas e tambores, adeus motas e verdes colinas, adeus calor que no rosto que nos transportas à infância e a sonhos nunca vividos, adeus saias descomprometidas e tops ligeiros, adeus longos passeios depois de jantar para colher aquele pouco fresco, adeus pés nus na areia. Adeus adeus, até para o ano.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

As Guerras das Mães




Apercebi-me cedo das guerras das mães. Durante a gravidez os acesos debates esgrimiam argumentos pró e contra epidural, cesariana ou parto natural. Dum lado as “pró-parto sem dor” e do outro “let’s do it natural”. Em vez de se alegrarem com a possibilidade de uma escolha (inexistente por exemplo da geração das nossas avós), as mães e profissionais de saúdes constroem autênticas trincheiras armadas em torno das suas preferências, ridicularizando ou minimizando as escolhas das “outras”.

Mas a verdadeira guerra começa depois do nascimento e muitas vezes com o leite, ou melhor, com a amamentação. Existem as mães do centro da curva de Gauss, que amamentam alguns meses mais ou menos até ao período do desmame (4-6meses), existem as mães que amamentam de 1 a 2 anos (seguindo mais ou menos as indicações da OMS), existem as mães que gostariam de amamentar mas não podem por problemas vários, existem as mães que não querem amamentar. Além destas existem todos os outros cambiantes que se podem imaginar.

Normal, não? A única coisa “anormal” é a guerra entre as facções mais ou menos extremas das que querem amamentar o mais possível e as que querem amamentar o menos possível ou nada.

Já há algum tempo que andava a matutar nestas coisas, mas a malvada crónica publicada pelo Público de uma tal Sofia Anjos (http://lifestyle.publico.pt/artigos/324603_as-maes-nao-se-medem-as-mamadas) empurrou-me para a catarse escrita. A senhora é mãe de um bebé de três meses e meio e tem-lhe dado para escrever sobre a experiência, não é a única. O problema (a ser um problema) é que pelo menos nesta crónica, tem uma capacidade de análise muito reduzida. Ao longo de uma página e meio de bocas disparadas a torto e a direito contra as adeptas da amamentação prolongada, escreveu uma só frase com a qual posso concordar: Sou a favor da amamentação para quem o queira fazer, mas dá-me algum formigueiro toda a panóplia de dissertações que colocam a amamentação num pedestal como se isso definisse o tipo de mamã que vais ser.
E aqui tem razão. Existem realmente algumas mamãs fundamentalistas da amamentação que parecem crer que é preciso amamentar até aos 3 anos para que o miúdo não se desintegre e transforme num psicopático inseguro ou por aí perto e que projectam essa paranoia sobre as outras mães. Sinto até alguma empatia por uma mulher que decidiu parar de amamentar aos 3 meses por motivos que só a ela dizem respeito (que pelo que me toque pode ser um simples não gosto) e que sofre com os habituais conselhos não pedidos que começam ao terceiro mês de gravidez. Mas minha senhora, aprenda lá a lidar com isso.

Porque na verdade o que a Sra. Anjos faz é exactamente o mesmo que fazem as senhoras de quem se queixa, mas em Público e com uma capacidade de ridicularizar quase boçal. E é aqui que entro em choque frontal com a cronista. Não é verdade como afirma ela que de momento está na moda amamentar até muito tarde. É uma corrente relativamente recente e minoritária e que tem vindo a ser apoiada pela OMS que tenta desmontar os mil e um mitos associados à amamentação e encorajar as mamãs a amamentar superandos os momentos difíceis associados (sim, é uma coisa muito natural, mas muito mais difícil do que se poderia imaginar).

Para obter um bom resultado na ridicularização, a Sr. Anjos usa expressões como ganha quem esguichar mais, ou frases acusativas como Estão-se nas tintas (as mães “fundamentalistas” que amamentam) se o bebé da outra vai ter todos os nutrientes, querem é saber se se portaram melhor que as outras. Uma das piores para mim (e ninguém contesta que o seu sentido de humor sarcástico tem uma certa piada) é que a amamentação para lá dos 6 meses é para mulheres cujos empregos têm boas casas de banho, aqui o nível baixa muito, como se já não bastasse as dificuldades associadas a continuar a dar de mamar quando se volta ao trabalho (para aquelas que têm um trabalho para onde voltar) a Sra. Anjos ainda usa uma metáfora que mete o tirar leite quase ao nível da punheta do intervalo do café, como se fosse uma coisa vergonhosa. Não sei este é um dos motivos pelos quais a Sra deixou de amamentar, a vergonha, e sinceramente não tenho nada a ver com isso, mas é muito feio, numa sociedade tão avessa à maternidade sentir-se no direito de publicamente fazer este tipo de comparações, principalmente quando se é mulher (mas como já disse noutras deambulações, não faltam por aí as mulheres machistas).

Continuamos com outras pérolas como o uso da palavras “tetas” para se referir às mamas, uma clara comparação da mulher que amamenta a uma vaca leiteira (bonito…) e por fim o cereja sobre o bolo: quanto aos pais, as mães pouco os deixam mamar nesta fase. À parte o mau gosto da frase (mas isso é só a minha sensibilidade pessoal) a frase irónica ilude certamente ao facto que durante a amamentação a mulher produza prolactina, a hormona que induz a produção do leite mas que tem o efeito colateral de baixar a líbido sexual. Talvez este tenha sido também um dos motivos para deixar de dar mama ao seu filho: “deixar mamar o seu homem”, espero que o não tenho feito por obrigação ou de uma maneira assim tão passiva como o verbo “deixar” insinua. E pergunto-me também se andou a perguntar às mães que dão mama se deixam “mamar” os homens e com que frequência, mas enfim, mais uma vez, não são assuntos que me digam respeito.

É uma pena que as mulheres se façam isto. É uma pena que as educadoras digam às mães que já é hora de parar de mamar, e que as mães que amamentam façam as que não amamentam sentir-se diminuídas. É uma pena as que decidem não dar de mamar ridicularizem as mães que amamentam e principalmente o esforço que isso implica. Enfim. É uma pena que não possamos simplesmente tomar as nossas decisões de forma informada e em paz com a nossa consciência, sem termos que passar por vexames e perseguições sociais quase sempre perpetuados por outras mulheres. É também uma pena que muitas mulheres e muitos homens continuem a achar que isto são assuntos exclusivos das mulheres, como se as mulheres tivessem os filhos sozinhas.
Enfim.

Quais serão as próximas guerras? Dar primeiro a cenoura ou a maçã? Coca-cola aos dois ou aos quatro anos? Telefone aos 6 ou aos 12 anos? Comprar-lhe a moto ou não? Haja paciência…
Permitam-me desta vez a mim dar um conselho não pedido: make love, not war ;-)