A Primavera traz quase sempre novos sons aos dias
Os passarinhos que cantam (alguém imaginou logo a Aurora que
passeia ligeira pelo bosque?), os adolescentes que falam e riem mais alto pelos
corredores das escolas e nas paragens de autocarro, as andorinhas que enchem os
céus de ti-ti-ti. Para quem se diverte a observar as pessoas que passam não
passará despercebido que a Primavera também é uma época de estranhas passerelles: nas ruas agora mais afoladas
cruzam-se casacos com sandálias, botas e t-shirts, calções e collants de lã, como se algumas pessoas
ainda não tivessem saído do Inverno, e outras já tivessem entrado no Verão.
Siena é uma cidade de urbanização medieval-renascentista
afolada dentro de uma cintura de muralhas com sete portas. Coroa um dos muitos
montes da Toscana e em seu redor espreguiçam-se longas paisagens onduladas que
a Primavera carrega de verde brilhante e de vivas cores floreais.
Apesar das suas peculiaridades, também em Siena os adolescentes
falam mais alto na Primavera e as andorinhas enchem os céus de acrobacias
musicais: ti-ti-ti ti-ti-ti. São aos milhares. Descendo até à Piazza del Campo
ao fim do dia, o azzurro forte do céu
é o cenário perfeito para este bando de pequenos arautos da luz e das flores.
Das janelas dos prédios centenários é vê-las dançar em perfeita sintonia por
entre torres alaranjadas, chaminés e telhados.
Mas em Siena, as Andorinhas não são os únicos arautos da
Primavera. Nas sinuosas estradinhas toscanas, perdidas entre o verde do milhos,
o roxo da lavanda ou o amarelo forte dos girassóis, as motas – hibernadas em
garagens mais ou menos arejadas durante todo o rigoroso Inverno – saem à rua em
zumbidos musicais. A mim dá-me sono, mas vejo que são portadores de grande
vitalidade, vejo-o nas faces avermelhadas dos casais vestidos de cabedal negro
ou cinzento que passeiam pelas quelhas estreitas e agora solarengas, uma pausa
nas suas peregrinações primaveris.
Andorinhas e motas.
Em Siena, o verdadeiro rei dos arautos da Primavera, o som
que ribomba por toda a cidade anunciando com pompa e circunstância a chegada da
Primavera, do sol, do bom tempo, esse é, ou melhor, são os tambores. Todas as contrade iniciam os
cursos de tambores. Os rapazes saem à rua e praticam as “tamboradas” o ritmo é
quase sempre o mesmo catum-catum-catum-tum-tum. Os padroeiros de cada contrada (bairro medieval), não por
acaso são todos na primavera e verão, e nesses dias é vê-los vestidos de pompa
e circunstâncias a desfilar pelas ruas (visitando as outras contrade que lhes servem lanchinhos) ao som
dos tambores. Em cada recanto da cidade, em cada pedaço de verde nos persegue
este catum-tum-tum, para uns irritante, mas que fechando os olhos, ou
deixando-os um bocadinho de nada abertos (como na praia quando nos viramos para
o sol), a luz dourada reflectida no
laranja das casas de janelas verdes e no verde potente dos campos ao longe, é a
música de fundo perfeita para este ambiente, uma porta mágica para uma viagem
no tempo, um acesso privilegiado a uma corrente de deambulações mentais.
Agora vai-se fazendo anunciar o Outono, o alter-ego da
Primavera. Coexistem pelas ruas e ruelas botas e sandálias, calções e chapéus
de chuva, mas as andorinhas já foram cantar para outros continentes, os
tambores arrumaram-se empilhados nos arrumos das contrade e as motas foram estacionadas nas garagens, cobertas com
longas mantas de sono.
Nas vitrines das lojas cachecóis e longos sobretudos tiram
as dúvidas, o Outono está a chegar. Ainda podemos sair sem meias, sair sem
chapéu de chuva, mas as ruas fecham mais cedo e já jantamos sem o Sol.
Adeus andorinhas e tambores, adeus motas e verdes colinas,
adeus calor que no rosto que nos transportas à infância e a sonhos nunca
vividos, adeus saias descomprometidas e tops ligeiros, adeus longos passeios
depois de jantar para colher aquele pouco fresco, adeus pés nus na areia. Adeus
adeus, até para o ano.