quinta-feira, 16 de maio de 2013

O Dia Antes



Domingo 12 de Maio começam os primeiros sinais por mim perceptíveis de que o parto se aproxima. Passo o dia em casa a experimentar as várias posições de trabalho de parto, para mim é praticamente um jogo experimentar as várias posições e ver como me sinto em cada uma. A barriga parece que rebenta. Sinto-me muito vaidosa desta barrigona, lançada para a frente como uma bandeira soberba, há um pouco de Vénus de Nilo em mim, esta barriga faz-me sentir poderosa, apesar de já não conseguir calçar umas botas sozinha.
Embora pesada, sinto-me excitada e energética, com vontade de arrumar, organizar, passear; passeios curtos, porque a minha autonomia só me permite fazer caminhadas de meia-hora, depois é preciso repor energias.

Algo me diz que se aproxima o grande dia, uma espécie de sensação omnipresente, mas não tenho pressa. Talvez por não me sentir realmente pronta, talvez por sentir já uma certa nostalgia pelo fim da gravidez que foi sem dúvida um dos períodos mais belos da minha vida, um verdadeiro estado de graça. Sinto-me sempre assim nos momentos de passagem, curiosa e ansiosa pelo porvir, nostálgica pelo que deixo para trás.

Na segunda volto a sentir aquelas dores manhosas que já sei serem contracções. A médica manda-me ao hospital fazer um exame just in case. O serviço é de uma eficiência impressionante: em 10 minutos estou na posição ginecológica (eufemismo para deitada-numa-cama-de-hospital-de-pernas-abertas) e uma médica desconhecida escarunfa-me como se eu fosse um carro na sucata e ela um mecânico com mais que fazer. 

Em certos serviços de saúde não somos mais do que maquinaria estragada, corpos desprovidos de humanidade. Voltei a casa com boas notícias que sabiam amargas na boca: tudo ok, volta daqui a duas semanas quando começar o “trabalho”.

Na quarta-feira abro o processo clínico nos dois hospitais onde poderia ocorrer o parto: aquele mais “médico” e perto de casa, e aquele mais “humano” onde se tudo corresse bem e gostaria de escolher. Estes pequenos procedimentos burocráticos sabem-me a despedida, sinto o meu pequenote que se gira e regira na barriga e sei que nunca mais serei capaz de o proteger assim tanto, ao mesmo tempo sinto os seus pés que barbatanam na parte de baixo à direita da minha barriga e não vejo a hora de os ter na mão, dar-lhes uma trinquinha amorosa.

O meu corpo diz-me que algo está estranho, pequenas perdas de líquido que me parecem urina – terei alguma espécie de incontinência gestacional? O tratamento “simpático” no hospital ao início da semana desencoraja-me de voltar ao hospital, não tenho energias para ripostar.
Na quinta vem uma amiga de longe a Siena, almoçamos, passeamos, e escondemo-nos da chuva comendo um gelado: limão e café como sempre, tiramos fotos. Aquelas perdas estranhas continuam, vamos lá outra vez ao hospital, mas ao outro, de que gosto mais, não vá o diabo tecê-las. E já agora, vamos meter as malas no carro.

Felizmente o acolhimento das obstetras é caloroso e com sorrisos legitima a minha preocupação: as membranas romperam-se, felizmente pouquinho. Tenho que ficar no hospital e começam os exames de rotina. Sinto-me descontraída e bem-disposta mesmo quando me dizem que provavelmente terão que me induzir o parto no dia seguinte se o trabalho de parto não começar espontaneamente. Metem-me no meu quarto que devo partilhar com uma mãe com um neo-nato do dia anterior. O quarto ainda está cheio dos seus parentes, e quando o meu companheiro sai para ir comprar o jantar uma ansia terrível invade-me: acabei de me aperceber que o mandarão para casa, que ficarei ali sozinha, e que estou para ter um filho.

domingo, 5 de maio de 2013

Gravidez e Género

Reflexões do Dia da Mãe

Quando o ginecólogo me disse que o meu feijão era macho (um ginecólogo particular, tipo um Dr. House da ginecologia), a minha reacção foi: que raios faço eu com um garoto? A quem passarei a minha colecção de brincos, a minha sabedoria “feminina” e todo o meu imenso mundo de “orgulho feminino”? É claro que é o tipo de crise que passa depressa, em dois dias já tinha mudado todas as minhas frequências mentais e descoberto todas as “vantagens” de meter ao mundo um garoto.

Tínhamos partido com a ideia de manter o sexo do feijãozito em segredo, mas depois não encontrámos nenhum motivo realmente convincente para o fazer e a vontade de compartilhar levou a melhor, e eis-me a responder às perguntas dos amigos-conhecidos-desconhecidos: é um “macho”.
Depois de ter sobrevivido aos ataques de festinhas à barriga, aos inumeráveis conselhos sobre onde e como parir, às intermináveis descrições de partos-monstruosos-que-mais-parecem-torturas, às considerações sobre o que comer e o que não comer (vais mesmo beber esse café? Olha que faz muito mal ao teu filho) e às mais variadas teorias sobre o significado da forma das barrigas; nada me tinha preparado para o rol de reacções que a comunicação de ter um filhote macho comporta.

Salva a possibilidade de que as pessoas para serem simpáticas te digam que o que te calhou em sorte é o melhor possível, a verdade é que a maioria das pessoas duplica os “parabéns” quando sabe que estás para parir um macho. Estes parabéns depois são normalmente associados a frases do tipo “ah, óptimo, bom trabalho”, “muito bem”, “oh! Óptimo, os rapazes são muito melhores!”, ou então “que sorte! Os rapazes são muito mais ligados à mãe, vais ver que te tratará como uma princesa”. Também existem as versões “negativas” ou seja “oh, que sorte, as raparigas dão muito mais trabalho”, ou “ boa, as meninas são muito piores” ou “é melhor um rapaz, as miúdas têm menos afinidade com a mãe”. A ÚNICA pessoa que me sugeriu que teria sido melhor ter uma miúda usou o profundo argumento de “não é mal, mas os rapazes são do mundo, ao menos as garotas ficam connosco”.

Bom. Agora já estou “habituada”, que é como quem diz que estes maravilhosos incentivos me entram por um ouvido e me saem por outro, mas considerando que a grande maioria destas pérolas saem da boca de mulheres, não deixa de me entristecer que existam tantos exemplares de fêmeas com um orgulho próprio tão baixo para considerar – e dizer – que ter um macho é melhor.
Eu pessoalmente sinto-me profundamente ofendida por esta visão. Não ofendida com estas mulheres em particular (talvez porque a única maneira de superar estes comentários seja “despersonalizar” estas mulheres e metê-las em gavetas classificativas), mas ofendida com a sociedade que faz estas mulheres pensarem e sentirem deste modo sem sequer refletirem sobre as implicações daquilo que estão a dizer. É óbvio, é uma sociedade preparada para acolher as miúdas com alegria e amor, sem lhes reservar o destino da desilusão familiar como acontece noutros países do mundo, ou nos nossos países noutros tempos. Mas ainda assim a reacção primordial (em tanta gente) é aquela de valorizar a chegada de mais um macho em relacção à chegada de mais uma fêmea. Como é triste constatar esta preferência social, este favoritismo, principalmente quando parte precisamente da parte de mulheres! 

E isto é uma das coisas que me entristece em particular, que tantas mulheres ainda sofram de um complexo de inferioridade social, que as faz, por exemplo, preferir ter um filho macho porque as tratará melhor e porque lhes dará menos preocupações (quando chegar aos 15anos, intenda-se).
Enfim. Relato um conjunto de experiências muito concretas e particulares, que não podem ser obviamente generalizadas e cuja única importância é aquela de fazer-me reflectir como, ainda hoje, tantas mulheres são os grandes vectores do machismo social, no modo como se exprimem, como educam os filhos, e como aceitam papéis cristalizados de género para não ficarem sozinhas ou para não serem “estranhadas”.

Sempre fui da opinião que o machismo é uma característica sócio-cultural que não pode ser só considerada culpa do homem, mas que sobretudo é uma “culpa” (não seguramente no sentido católico) da mulher. Concordo com Augusto Boal que defende que o combate à opressão deve estar nas mãos do oprimido e do mesmo modo o machismo como forma de opressão social deve ser recusado e combatido principalmente pelas mulheres (e não só, até porque estou convencida que o machismo comporta consideráveis desvantagens também para os homens, mas isso é uma outra história).

Tive sempre a sorte de estar rodeada por homens não machistas, e no meu círculo social prevalecem as mulheres auto-determinadas e que recusam a prisão dos estereótipos de género cristalizados, mas apercebo-me que em tantas pequenas coisas – para tanta gente – ser homem ou mulher ainda é determinante para uma definição dos papéis sociais e familiares não só a nível diferencial mas, sobretudo socialmente hierárquico.

Estou orgulhosa de esperar um filho, e estaria orgulhosa se esperasse uma filha. Mas concretamente a única grande vantagem que vejo neste momento em ter um filho, além de que provavelmente me gastará muito menos dinheiros em artigos de higiene, é saber que ele – em comparação com uma filha – terá um pouco mais de facilidade de integração social pois chegará a uma sociedade feita à sua medida e que não o carregará à partida – só pelo seu sexo – de uma enorme quantidade de complexos e imagens sociais de inferioridade que terá que combater toda a vida. Mas espero ser capaz de educar um filho que um dia fique tão feliz por ter uma filha como um filho e que não tenha nos seus critérios de selecção de companheira o “ser capaz de tratar de uma casa”.